George Floyd
Diz-se, na linguagem corrente, que “cada caso é um caso” – o
que, traduzido em linguagem da ciência, significa que um caso carece de
validade externa. Mas quando um caso se soma a outro caso, e este a outro, e
assim sucessivamente, já temos um padrão.
Vem isto a propósito de um dos casos que, neste momento,
incendeia (literalmente) os Estados Unidos da América: a morte do cidadão negro
George Floyd por efeito de uma intervenção policial repugnante ocorrida no dia
25 de maio deste ano.
A intervenção policial verificou-se pouco depois das 20
horas daquele dia, tendo a morte de Floyd ocorrido já no hospital pelas 21h25.
No dia 26 de maio, logo pela manhã, o Departamento de Polícia de Minneapolis apressou-se
a dar uma conferência de imprensa em que referia que Floyd teria oferecido
resistência física à prisão. Se ninguém tivesse visto e registado o incidente,
tudo teria ficado por aí: mais uma morte
“infeliz” de um “delinquente” negro que não sobreviveu ao “uso adequado” da
força pela polícia.
Acontece que o evento que vitimou Floyd foi filmado por uma
cidadã, que colocou as imagens no seu Facebook, tornando-se virais nas redes
sociais e sendo difundidas, depois, pelas diversas televisões dos EUA e de todo
o mundo. A estas imagens viriam a juntar-se, mais tarde, as de um outro vídeo
filmado por um outro espetador e as de um vídeo da câmara
de vigilância de um restaurante situado no local.
Todos os vídeos desmentem, de forma
gritante, a versão da polícia de que Floyd teria resistido à prisão.
A ser único, o caso de Floyd já seria
muito grave. A questão é que ele faz parte de um conjunto de muitos outros
casos, obedecendo sempre a um mesmo padrão: ação policial mortal sobre um
cidadão negro - legitimação dessa ação pelas autoridades policiais – imagens
dos eventos filmadas por cidadãos – divulgação dessas imagens nas redes sociais
e nos media mainstream – revolta cidadã que muitas vezes resvala para a
violência urbana. Não creio que os polícias tenham lido Hannah Arendt, mas parecem
sempre aplicar o seu dito de que “O verdadeiro poder começa onde o segredo
começa” (Origens do totalitarismo).
A propósito deste caso e de um outro incidente menos grave,
o jornalista Don Lemon, da CNN, referiu-se a “dois vírus mortais que estão a
matar os Americanos. Covid-19, Racismo-20”.
A comparação faz todo o sentido: não só o Covid-19 matará
muito mais cidadãos negros do que brancos - segundo dados recentes do APM
Research Lab, respetivamente 50.3 e 20.7 por 100 000 pessoas -, como o vírus
racista se dirige especialmente contra eles, numa espécie de tentativa de
regresso aos tempos de Martin Luther King, eliminando os Direitos Civis e apagando
a presidência de Barack Obama.
Se é verdade que este movimento tem como protagonistas mais
ativos os supremacistas brancos, estes não só são apoiados de forma mais ou
menos explicita pelo presidente em exercício - que exprime com alguma
regularidade as suas inclinações racistas, autoritárias e mesmo nazifascistas
-, mas também exprimem às claras o racismo que continua a constituir uma constante
social, política, económica e cultural da sociedade estadunidense.
Como disse de forma irónica, já há alguns anos, o ator Will
Smith, “O racismo não está a piorar. Está a ser
filmado”. (The Late Show with Stephen Colbert, 2016).
Paulo Serra